Evangelho da Recusa Absoluta
I. Prolegômeno à Ausência.
A vontade de não-ser
é o único verbo não contaminado
pela luxúria do existir.
Ela não pretende,
não afirma,
não deseja.
Ela silencia...
e ao fazê-lo, consagra.
Toda ânsia é cárcere,
até a de cessar.
Mas há um instante
em que o desejo morre sem suplício,
não por exaustão,
mas por esvaziamento radical de estrutura.
Não há mais sujeito para desejar.
Nem desejo.
Nem objeto.
II. Sobre o Abismo e Sua Não-Existência.
Fala-se em salto.
Fala-se em abismo.
Mas o salto é invenção
de quem ainda crê no chão,
e o abismo,
fantasia dos que não compreenderam
a nulidade do fundo.
O suicida ordinário
mata o corpo.
O ontológico
aniquila a linguagem
que permite o conceito de corte.
É ele quem percebe,
a lâmina só corta
porque acreditamos na separação.
III. A Última Cela.
O sábio,
ao ultrapassar o penúltimo véu,
encontra a cela adornada
com as vestes do Logos.
Ali, toda luz é cárcere.
Toda resposta, um eco.
Então, em ato de desobediência
mais puro que qualquer ascetismo,
ele entrega a chave ao vento.
Mas o vento não a toma.
Porque nunca houve vento.
Nem chave.
Nem cela.
IV. Desfiguração do Sagrado.
Nenhum Iluminado
alcançou o Silêncio.
Pois o Silêncio
é a extinção da ideia de alguém que o possa alcançar.
O instante desperto
não grita,
não sussurra
desfaz-se antes mesmo de tocar a linguagem.
O Absoluto,
se houver,
não repousa no além.
Habita a fratura entre o ser
e a suposição de sentido.
V. Último Fragmento, Sem Nome.
Não há salto,
não há céu,
não há fim.
Há apenas o desvelamento
de que o véu
nunca esteve ali.
E aquele que vê isso...
não morre.
Não vive.
Não retorna.
Simplesmente
desé.
Nota explicativa:
¹ “Desé” — neologismo criado a partir da raiz do verbo “ser”, antecedido do prefixo negativo “des-”, designando o estado último e absoluto de cessação ontológica. Diferente de “não ser”, que ainda depende da referência ao ser, desé é a extinção não apenas da existência, mas da ideia de existir. Não equivale a morrer, pois a morte pressupõe vida anterior. Não equivale a anular-se, pois a anulação ainda contém a noção de sujeito. Desé é dissolver até o verbo. É sair do campo da linguagem, da metafísica e da consciência. É o fim sem oposto. É o que resta quando até o nada se silencia.
Site Franklin Mano
Enviado por Site Franklin Mano em 22/06/2025
Alterado em 22/06/2025